Português (Brasil)

China, possível núcleo avançado de um sistema de transição do capitalismo para o socialismo

China, possível núcleo avançado de um sistema de transição do capitalismo para o socialismo

A China é a fábrica do mundo, hegemoniza o mercado capitalista mundial, mas, excepcionalmente, não é controlada pelo sistema financeiro imperialista, nem pelos monopólios internacionais, nem pelos mais ricos bilionários chineses. A China é controlada pelo PCCh, que controla tudo, em detrimento e contra o capital. O Estado controla a maioria das empresas, o sistema financeiro,a propriedade da terra é amplamente dominado pelos governos locais.

Compartilhe este conteúdo:

Declaração do CLQI

 

As relações entre diferentes nações dependem do ponto até onde cada uma delas tenha desenvolvido suas forças produtivas, a divisão do trabalho e o intercâmbio interno. Esse princípio é, em geral, reconhecido. Mas não apenas a relação de uma nação com outras, como também toda a estrutura interna dessa mesma nação dependem do nível de desenvolvimento de sua produção e de seu intercâmbio interno. A que ponto as forças produtivas de uma nação estão desenvolvidas é mostrado de modo mais claro pelo grau de desenvolvimento da divisão do trabalho.

(Karl Marx, A ideologia alemã, 1846).

Sumário

 

  1. Introdução
  2. A superação da questão histórica do atraso produtivo
  3. A questão dos preços: a ultrapassagem na luta de classes internacional
  4. Um estado operário, de quem o modo de produção capitalista se tornou dependente
  5. Um combo poderoso para a transição: Desenvolvimento das forças e a conquista do mercado mundial
  6. A luta de classes nacional e internacional pelos preços, desdolarização e guerra tarifária
  7. A desigualdade que cresce no mundo capitalista, diminui na China
  8. “Novo imperialismo”, “Estado desenvolvimentista weberiano” e “Capitalismo de estado”
  9. Um sistema em transição ameaçado por perigosas contradições estruturais e geopolíticas
  10. Em defesa do internacionalismo socialista!

 

1. Introdução

 

A China é a fábrica do mundo, hegemoniza o mercado capitalista mundial, mas, excepcionalmente, não é controlada pelo sistema financeiro imperialista, nem pelos monopólios internacionais, nem pelos mais ricos bilionários chineses.

A China é controlada pelo seu Estado, que é controlado pelo Partido Comunista Chinês (PCCh). Esta segunda excepcionalidade assegura a existência da primeira. O capital não comanda o Estado nem orienta a economia porque o Estado controlado pelo partido comunista é quem controla tudo, em detrimento e contra o capital. O Estado controla a maioria das empresas, o sistema financeiro é dominado pelos bancos estatais, o sistema de propriedade da terra é amplamente dominado pelos governos locais e municipais.

O documento a seguir apontará como a China do século XXI superou várias limitações da China, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e dos Estados de transição menores criados no século XX. Ao fazê-lo, a China vem superando as nações mais avançadas do imperialismo mundial no desenvolvimento das forças produtivas, da tecnologia de ponta em vários ramos produtivos, na produção de mercadorias, no intercâmbio interno, com aumentos salariais, a redução das desigualdades e da miséria, no intercâmbio externo dessas mercadorias, produzidas a menor preço e maior tecnologia do que nos concorrentes, alcançando hegemonia do mercado mundial. Todavia, esse processo ocorreu às custas de um retrocesso relativo na divisão do trabalho e privatizações que vem sendo mediados e revertidos nos últimos anos pela incorporação das tecnologias na produção, mas em convívio ainda com jornadas extenuantes de trabalho.

No plano geopolítico, para além de alguns diplomáticos e formais protestos, a China não manifesta qualquer traço de internacionalismo proletário contra as agressões, sanções e bloqueios realizados pelas potências imperialistas contra as nações e povos oprimidos.

Essa jornada de trabalho e essa geopolítica, bem como uma classe burguesa bilionária, crescente e poderosa, apesar da fuga de capitais e capitalistas dos últimos anos, debilitam a China a médio e longo prazo no enfrentamento com o capitalismo internamente e extremante e podem comprometer sua evolução em direção ao socialismo.

 

2. A superação da questão histórica do atraso produtivo

 

A China vem resolvendo, a partir do controle planificado estatal, o problema histórico do desenvolvimento das forças produtivas. Contraditoriamente, o início da resolução desse problema histórico foi dado pela combinação de duas forças globais contrapostas: de um lado, o capital monopolista mundial, através dos investimentos produtivos (industriais e tecnológicos) a partir da montagem das Zonas Econômicas Especiais, em 1979-80; de outro lado, a maior força produtiva planetária reunida em uma só nação, o proletariado chinês, composto por um bilhão de trabalhadores.

A questão do atraso das forças produtivas foi um problema histórico, crônico e comum a todos os estados operários surgidos de revoluções socialistas no século XX, ocorridos em estados capitalistas atrasados, semicoloniais ou elos mais fracos da cadeia de estados imperialistas-capitalistas, como a Rússia. Por isso, a epígrafe que abre esse documento, escrita por Marx, destaca: “As relações entre diferentes nações dependem do ponto até onde cada uma delas tenha desenvolvido suas forças produtivas, a divisão do trabalho e o intercâmbio interno” (Marx, Ideologia alemã, 2007, p.89).

A Comuna de Paris, o primeiro governo dos trabalhadores da história durante o capitalismo, ocorrido em 1871, instaurado por apenas dois meses, embora em uma nação capitalista avançada, que, portanto, poderia reunir as melhores condições possíveis na época para o desenvolvimento das forças produtivas, não chegou a constituir um estado operário nem a tomar o poder econômico, o Banco da França.

Toda evolução humana se apoia no desenvolvimento das relações de produção da vida social entre os homens e da evolução das forças produtivas.

Relações de produção são as relações sociais que se estabelecem no processo de produção e na distribuição dessa produção, incluindo a forma como os meios de produção são possuídos e como a força de trabalho é organizada e explorada. A evolução das relações está na superação ou atenuação da exploração do homem pelo homem, que existe, por exemplo, na passagem do escravismo para o capitalismo no Brasil com a revolução abolicionista de 1888.

Força produtivas em geral são os meios de produção, se referem ao desenvolvimento da ciência, das invenções tecnológicas, da divisão e combinação do trabalho, do aperfeiçoamento dos meios de comunicação, da criação do mercado mundial, da maquinaria etc. Todavia, desde sua gestação, no período paleolítico até a revolução agrícola e todo o desenvolvimento histórico posterior, as forças produtivas em geral dependem da força produtiva do trabalho humano (capacidade de trabalho dos indivíduos). Portanto, “a principal força produtiva, [é] o próprio ser humano” (Marx, Grundisse, 2011, p. 346). A evolução das forças produtivas pode ser medida pela melhoria das condições de vida do ser humano.

A dialética evolutiva entre esses dois elementos, relações de produção da vida social e forças produtivas é o que determina o modo de produção. Dito de outro modo: A combinação entre a produção material com a forma correspondente de intercambio constitui o modo de produção. E o que é fundamental para entendermos em que momento do processo histórico em direção a um comunismo desenvolvido nós nos encontramos.

Durante milhares de anos, a forma comunista primitiva das relações de produção, baseadas no trabalho social mediou a relação do homem com a natureza e transformou a natureza em geral e a natureza humana, em particular. O gênero homo existe há pelo menos 1,5 milhão de anos. A sociedade de classes, há menos de 10 mil anos. Foi o comunismo primitivo o movimento responsável pela aparição do homo sapiens na fauna terrestre, há aproximadamente 300 mil anos, separando-o dos outros primatas superiores selvagens. O homem só é homem por causa do comunismo primitivo, por causa das relações de produção desenvolvidas pelos homens entre si em comunidade para sobreviver na natureza.

Foi muito recentemente ao longo dessa evolução, com a evolução das forças produtivas que contraditoriamente as relações de produção retrocederam do comunismo primitivo para a sociedade de classes. Esse passo atrás promoveu outros passos à frente na evolução das forças produtivas e nas relações de produção, da sociedade escravocrata originária para o capitalismo atual.

Tentando resolver o problema do atraso das forças produtivas, em 1917, a Rússia fez uma revolução socialista, deu um enorme salto na evolução das relações de produção, mas 4 anos depois, teve que dar um passo atrás nessas relações de produção para desenvolver as forças produtivas, criando a Nova Política Econômica. O atraso russo, atacado e sabotado por todos os lados pelo imperialismo mundial e pelo nazismo, criado pelo imperialismo contra o comunismo e a URSS, impediu um maior desenvolvimento das forças produtivas. Seja como for, a experiência russa foi avançada para sua época, ou talvez precoce.

Em 1949, uma poderosa revolução social ocorreu na China quando os exércitos guerrilheiros do Partido Comunista Chinês tomaram o poder e estabeleceram um Estado operário, derrotando o Kuomintang, o partido da burguesia nacional, apoiado pelo imperialismo estadunidense e seus aliados, como a Grã-Bretanha. Isso ocorreu no contexto mais amplo da derrota da Alemanha nazista e do Japão imperial na Segunda Guerra Mundial, que foi tanto uma guerra de autodefesa do Estado operário da URSS contra a invasão da URSS por Hitler, quanto uma guerra interimperialista entre Alemanha/Itália/Japão e os EUA e seus aliados da Europa Ocidental. Ao final da guerra, as tropas soviéticas lutaram contra o imperialismo japonês na Mongólia e na Manchúria, o que ajudou a criar o contexto para a vitória posterior das forças do PCCh.

A política do PCCh seguia em grande parte o mesmo modelo da liderança de Stalin na URSS, que representava uma burocracia operária conservadora que havia abandonado o objetivo da revolução mundial e buscava a "coexistência pacífica" com o imperialismo para afastar os perigos para o Estado operário. O PCCh se baseava não no proletariado das cidades chinesas, mas no enorme campesinato empobrecido e oprimido da China, e sua luta, inicialmente voltada para a libertação nacional e um bloco com a burguesia nacional, com o "socialismo" adiado para um estágio posterior, ainda era uma poderosa luta das massas camponesas. O regime burocrático do PCCh e seus exércitos assemelhavam-se ao regime de Stalin na URSS. Ao assumir o poder, foi confrontado com a realidade de que a burguesia nacional preferia o apoio do imperialismo, e tal regime policlassista era impossível. Isso foi demonstrado particularmente na guerra contrarrevolucionária travada pelo imperialismo na vizinha Coreia, onde os imperialistas, em determinado momento, ameaçaram a própria China. Assim, o regime burocrático do Partido Comunista Chinês, para sua própria autopreservação, foi levado a desencadear uma revolução social completa, estabelecendo um estado operário deformado com um regime burocrático semelhante em muitos aspectos ao da URSS sob Stalin e seus sucessores.

Esta China fez uma revolução social, deu um enorme salto de qualidade em relação a evolução das relações de produção e por 40 anos patinou no desenvolvimento das forças produtivas, nesse período precisou drenar enormes recursos do campesinato para se industrializar, não conseguiu, até a década de 1980 o PIB da China era menor do que o do Brasil. Aí, só a partir da década de 1980 a China passou a ser atravessada em cheio por investimentos capitalistas-imperialistas, pois a ruptura da China com a União Soviética tornou o PC Chinês relativamente confiável para o imperialismo para que esse investisse enormes massas de capital para transplantar a produção global de mercadorias para a China e fazer do país a “oficina do mundo” como Lenin chamava a Inglaterra do início do século XX, no seu livro “Imperialismo,...” de 1916.

O desenvolvimento das forças produtivas chinesas, com o imperialismo soprando a favor e nenhuma ameaça nazista como a URSS viu na superpoderosa Alemanha imperialista nas mãos de Hitler, e a flexibilização das relações de produção criaram na China condições ideias para um novo ensaio de socialismo, contando a seu favor uma abundância incomparável da maior força produtiva do planeta, o fator de maior criação da riqueza social, a força de trabalho humana, que copiou, estudou e catapultou outra força produtiva, a tecnologia. Sob esses aspectos, a China retoma o curso e as perspectivas da evolução socialista da humanidade em direção a um comunismo desenvolvido. O imperialismo financeirizado e desindustrializado percebeu o perigo somente depois de três décadas de investimentos e da própria crise de 2008 que o debilitou ainda mais. Independentemente das características singulares ou das idas e vindas que a política mundial teve nos últimos 17 anos, o imperialismo recriou o monstro nazista para recuperar a hegemonia perdida no mercado, na tecnologia, na política mundial e no desenvolvimento das forças produtivas, que o movimento neonazista estadunidense traduz em Make American Great Again (MAGA).

Mas, essa tentativa de frear o curso da história chegou tarde e ainda que chegasse cedo não é possível estabelecer um fim para a história sem liquidar com a espécie humana e também com a natureza planetária.

Essa guerra tarifária, prenúncio da guerra militar, só está conseguindo isolar os Estados Unidos da América (EUA) do ponto de vista econômico, o que poderá debilita-los os EUA na largada de uma terceira guerra mundial. E isso pode até abortar a terceira guerra de tão prejudicial que está sendo a tática do governo de Donald Trump de fazer os EUA grande novamente. Não reindustrializará o país, e nesses quase 100 dias de mandato, também está arruinando o próprio capitalismo financeiro. As Big Techs e Wall Street perderam 10 trilhões de dólares de fevereiro para cá, entre o estouro da bomba especulativa da Inteligência Artificial (IA) e as ameaças de tarifaços, e recuperaram por um movimento meramente especulativo, quatro desses 10 trilhões de dólares com a suspensão das tarifas por três meses. Mas isso é só mais uma demonstração da condição imparável do desenvolvimento chinês, como tem sido a Haway, a BYD, o DeepSeek, etc.

A resolução positiva do problema do desenvolvimento das forças produtivas só é possível pela mediação consciente do controle planificado estatal desse desenvolvimento, através do reinvestimento em pesquisa, da melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, através da urbanização da sociedade, da redução da pobreza e do aumento dos salários (em que pese a ainda extenuante jornada de trabalho), de medidas contra arrestantes para a redução dos custos do capital constante que em todo ambiente capitalista gera a redução das taxas de lucros.

Supomos que, enquanto o ocidente capitalista torna-se ainda mais bizarro e bestial, perseguindo e combatendo os métodos materialistas e históricos da compreensão da vida em sociedade e da economia capitalista, como vem ocorrendo na caça às bruxas promovida pelo governo de Trump às universidades estadunidenses, a planificação econômica controlada pelo Partido Comunista Chinês apoia-se na crítica da economia política marxista e tenta mitigar as sequelas do mercado e do capitalismo na economia chinesa.

Desse modo, barateando o capital constante, a China disparou na frente na revolução tecnológica da IA, como ocorreu com o recente caso da superação extraordinária em custos, gastos de energia, rendimentos e liberação de uso do DeepSeek em relação aos aplicativos de IA desenvolvidos e monopolizados até então pelos EUA. Em que pese qualquer crítica à IA, o poderoso contragolpe chinês, recorrendo a uma arma que foi desenvolvida de forma imanente à política de sanções, é um contra-ataque anti-imperialista e anti-monopolista da tecnologia pelo imperialismo. Ao reduzir os custos de capital constante de suas empresas, os tecnocratas da China empregam medidas que aprenderam no estudo de Marx. No livro III de O Capital, Marx enumera seis causas contra arrestantes para a lei da queda tendencial da taxa de juros. Uma delas, a terceira, é o barateamento dos elementos do capital constante. (ver também Emancipação do Trabalho: Humberto Rodrigues, DeepSeek - o míssil que furou a bolha especulativa das Big Techs).

 

3. A questão dos preços: a ultrapassagem na luta de classes internacional

 

A Questão Lênin "Quem Vencerá?" é Decidida a Favor do Socialismo Contra Elementos Capitalistas na Cidade e no Campo. Cartaz criado pela Brigada de Artistas em Moscou e utilizado em uma exposição itinerante intitulada "Os Resultados do Primeiro Plano Quinquenal e os Objetivos do Segundo Plano Quinquenal". 1933.

 

No início do governo bolchevique, apesar de toda determinação do proletariado e de sua direção na URSS, pairava a dúvida sobre quem vencerá a luta de classes internacional, o proletariado da URSS ou o imperialismo. No segundo Congresso Pan-Russo de Departamentos de Educação Política, em 17 de outubro de 1921, Lenin atualizava o seu “Que fazer?” indagando o público com as questões concretas da época:

O que você quer fazer?

A questão toda é: quem ultrapassará quem?

—? Lênin

Trotsky, em 1925 e Stalin, em 1929, retomaram a pergunta de Lenin sob táticas distintas. A indagação passou a ser usada como uma fórmula que descreve a inevitabilidade da luta de classes, ou seja, quem (qual dos dois antagonistas) dominará o outro. Nessa visão, todos os compromissos e promessas entre inimigos são apenas expedientes – manobras táticas na luta pela supremacia.

Trotsky retoma o debate em 1936, em Revolução Traída:

 

A questão formulada por Lênin – Quem prevalecerá? – é uma questão da correlação de forças entre a União Soviética e o proletariado revolucionário mundial, de um lado, e, do outro, o capital internacional e as forças hostis dentro da União. Os sucessos econômicos da União Soviética permitem que ela se fortaleça, avance, se arme e, quando necessário, recue e espere – em uma palavra, resista. Mas, em sua essência, a questão de Quem prevalecerá – não apenas como questão militar, mas ainda mais como questão econômica – confronta a União Soviética em escala mundial. A intervenção militar é um perigo. A intervenção de mercadorias baratas nos trens de bagagem de um exército capitalista seria incomparavelmente maior. A vitória do proletariado em um dos países ocidentais alteraria, é claro, imediata e radicalmente a correlação de forças. Mas enquanto a União Soviética permanecer isolada e, pior do que isso, enquanto o proletariado europeu sofrer reveses e continuar a recuar, a força da estrutura soviética será medida, em última análise, pela produtividade do trabalho. E isso, em uma economia de mercado, se expressa nos custos e preços de produção. A diferença entre os preços domésticos e os preços no mercado mundial é um dos principais meios de medir essa correlação de forças. Os estatísticos soviéticos, no entanto, estão proibidos até mesmo de abordar essa questão. A razão é que, apesar de sua condição de estagnação e decomposição, o capitalismo ainda está muito à frente em termos de técnica, organização e qualificação da mão de obra (Trotsky, 1936, Revolução Traída, 2. Estimativas comparativas dessas conquistas; grifos, em negrito, nossos).

 

Nada disso, que assombrava os dirigentes bolcheviques nas primeiras décadas do poder soviético preocupa a China hoje! A China não só não corre o risco de ser invadida por mercadorias ocidentais de baixo preço como promove, há décadas, o movimento oposto sobre o mercado mundial. E mais, é a potência capitalista mais rica de toda a história mundial quem se sente ameaçada pelas mercadorias chinesas e recorre a uma violenta e desesperada política tarifária para “se defender”. A China comemora vitórias sobre vitórias “nos custos e preços de produção”, a “diferença entre os preços domésticos e os preços no mercado mundial” tem demonstrado, “um dos principais meios de medir essa correlação de forças”, tem se mostrado a superioridade da China na correlação de forças; e cada vez mais, como revelaram as recentes disputas com a Haway, a BYD e o DeepSeek, a China “está muito à frente em termos de técnica, organização e qualificação da mão de obra”. Tudo isso aponta que, respondendo a esse subtítulo e a indagação de Lenin, a China está operando a ultrapassagem em relação ao imperialismo.

 

4. Um estado operário, do qual o modo de produção capitalista se tornou dependente

 

A guerra tarifária de Trump tem isolado os EUA e empurrado mais ainda o conjunto dos paises para o lado da China

 

A China é a maior "potência manufatureira" contemporânea. Essa condição, alcançada pelo país somente no século XXI, faz com que a China seja o maior produtor da “imensa coleção de mercadorias” usada e trocada em todo planeta. Esse conjunto de mercadorias é a forma pela qual se apresenta, à primeira vista, a riqueza da sociedade burguesa no modo de produção capitalista. Para além da aparência, a China é responsável efetiva pela produção da mercadoria em sua dupla natureza, a do valor de uso e a do valor de troca, que abastece a população mundial [1].

Em 2023, a produção industrial da China foi US$ 4,659 trilhões e a China foi responsável por 29% da produção industrial global, superando as quatro maiores economias seguintes juntas (EUA, Japão, Alemanha e Coreia do Sul). Isso colocou o país quase 12 pontos percentuais à frente do segundo colocado, os Estados Unidos, que costumava ter o maior setor industrial do mundo até a China ultrapassá-lo em 2010.

Em 2024, a China tornou-se responsável por 32% da produção industrial global.

No primeiro trimestre de 2025, a produção industrial das grandes empresas chinesas subiu 7,7%, na comparação com igual período de 2024, informou o escritório de estatísticas do país, o NBS.

 

Em março, o valor agregado das empresas industriais acima do tamanho designado aumentou 7,7% [...] são empresas com receita anual do negócio principal superior a 20 milhões de yuans [...] O valor total das exportações foi de 2.251,5 bilhões de yuans, um aumento de 13,5%.” (NBS: A economia nacional teve um bom começo no primeiro trimestre, 16/04/2025).

 

A China é a superpotência industrial mundial - Países com a maior participação na produção industrial global em 2023

 

As trocas entre os seres humanos evoluíram do comércio local – após o enorme salto inicial para o desenvolvimento das forças produtivas dado pela revolução agrícola que criou o excedente de produção – ao comércio entre cidades-estado, entre regiões vizinhas, continentes e passou ao mercado mundial. Tudo isso foi potenciado pela chamada globalização do comércio, um processo crescente entre os séculos XVI e XXI de integração e interdependência entre as nações, abrangendo a circulação de bens, serviços, informações, capitais e pessoas em escala global.

A China foi a nação que mais se beneficiou produtiva e tecnologicamente com a globalização da etapa neoliberal da fase imperialista, devido a liberalização da transferência de plantas industriais e tecnologias de produção para o país asiático por monopólios imperialistas. As metrópoles capitalistas optaram por desindustrializar-se e beneficiar-se do circuito mundial capitalista, ficando com os dividendos financeiros e especulativos do mercado global.

Nos últimos 15 anos, entre 2010 e 2025, após a crise econômica de 2008 e a pandemia de Covid-19, que potenciaram a decadência financeira, a desindustrialização e a virtualização do sistema imperialista mundial, a China alcançou primeiro a hegemonia quantitativa no mercado mundial e depois deu um salto qualitativo nessa hegemonia. O país partiu da exportação de manufaturas de baixo valor agregado para alcançar sua soberania tecnológica e escalar na exportação de manufaturas de alto valor agregado.

O processo de crescimento deu um salto de qualidade nos anos recentes. A China escalou na cadeia de valor e se tornou a maior produtora de mercadorias de baixo e de alto valor agregado. Ainda que parte da produção de mercadorias de menor valor agregado tenha sido dispersada pelas nações asiáticas vizinhas, como Vietnã e Índia, a China continua dominando a exportação mundial de mercadorias manufaturadas como roupas, eletrodomésticos, calçados, mas também de mercadorias com a mais alta tecnologia incorporada, como smartphones, baterias de íons de lítio, carros elétricos e Inteligência Artificial, máquinas-ferramentas automatizadas e robótica; equipamentos aeroespaciais e aeronáuticos; equipamentos marítimos e transporte de alta tecnologia; equipamentos modernos de transporte ferroviário; equipamentos de energia; equipamentos agrícolas; novos materiais; e biofarmacêuticos e produtos médicos avançados. Entre 1995 e 2020 a qualidade das mercadorias para a exportação mudou e se inverteu:

 

Em 1995, roupas e outros têxteis representavam 20% do total das exportações chinesas, enquanto os eletrônicos representavam menos de 9%. Em 2020, esse cenário se inverteu: os eletrônicos representavam 24% das exportações chinesas e os têxteis, apenas 10%.

Esse processo, frequentemente chamado de ascensão na cadeia de valor, exige investimento de capital e conhecimento técnico para construir e operar instalações fabris modernizadas. Em gerações anteriores de planejamento industrial, os fabricantes chineses absorveram esses fatores de produção de empresas estrangeiras, gerando frustrações com a transferência de tecnologia que alimentaram as tensões comerciais na década de 2010. Em algumas áreas, no entanto, os líderes tecnológicos chineses alcançaram — ou ultrapassaram — seus concorrentes internacionais, exigindo uma maior dependência da inovação nacional (China Power: Measuring China’s Manufacturing Might).

 

A China passou a ter hegemonia sobre o mercado mundial porque todo esse processo descrito acima conduziu a China a condição de maior economia exportadora do mundo e segunda maior importadora, ficando atrás apenas dos EUA até 2024. Todavia, é bem provável que, após as inéditas tarifas de importação anunciadas pelo governo Trump sobre praticamente todos seus parceiros comerciais, o maior protecionismo dos EUA deva reduzir a quantidade de mercadorias exportadas dos outros países, isolando-o comercialmente do resto do planeta, e resultar na perda do título de maior importador mundial e a China consolide a trajetória de maior exportadora e importadora do mercado mundial.

A dependência que o modo de produção capitalista tem da China se tornou ainda mais evidente, explícita e vergonhosa para os EUA, depois que Trump elevou para 245% seu pacote de tarifas sobre as importações vindas da China e depois teve que isentar das mesmas uma lista de 20 categorias de produtos, como celulares, computadores, semicondutores, chips de memória e monitores de tela plana.

A guerra tarifária do governo dos EUA contra a China demonstra que o imperialismo mundial não governa a China. A liderança militar e financeira do capitalismo mundial não governa o núcleo da produção de mercadorias mundiais – embora grande parte dos monopólios imperialistas sigam tendo ganhos de lucratividade com suas plantas instaladas na China desde a implantação das Zonas Econômicas Especiais – uma situação inédita dentro da história do modo de produção capitalista.

 

5. Um combo poderoso para a transição: desenvolvimento das forças e a conquista do mercado mundial

 

Na obra A Ideologia Alemã (1845-6), escrita depois dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844), o materialismo histórico incorporará os conceitos de trabalho e alienação e ganhará um formato aprimorado que delineará o restante da obra de Marx e Engels.

 

Essa “alienação” [Entfremdung] para usarmos um termo compreensível aos filósofos, só pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder “insuportável”, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolução, é preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente “sem propriedade” e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento – e, por outro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano histórico-mundial) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa “sem propriedade” (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das revoluções do outro; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como “circunstâncias” doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação “repentina” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento. (Anotações de Marx, escritas na margem do manuscrito que foram publicadas como notas de rodapé do Livro Ideologia Alemã, 2007, p. 38).

 

Com passagem para a vida urbana da maioria da humanidade (na qual a China é um ator central) e com a industrialização da agricultura, as condições para a abolição da sociedade de classes e a transição para a futura sociedade comunista estão sendo cada vez mais criadas. Note-se, a tecnologia da informação e as telecomunicações criam as condições para o planejamento central da produção e da mudança em nível internacional de forma integrada e sem qualquer tipo de burocratização; a cibernética, incluindo a inteligência artificial, permitem abrir caminho para a abolição da diferença entre trabalho manual e intelectual, etc.

Ao promover um grande aumento das forças produtivas (gerais e do trabalho) – “um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer” – simultâneo a conquista da hegemonia sobre o mercado mundial, na condição (capitalista) de maior economia exportadora e segunda maior importadora de mercadorias do planeta, desenvolvendo forças universais e insuportáveis para a hegemonia do imperialismo, a China demonstra situar-se na transição entre o capitalismo e socialismo, cujo avanço para o comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação “repentina” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento”.

Nesta última sentença pode residir onde a natureza pacífica e defensiva do pensamento confucionista (de 551 e 479 a.C.), sistema de ética social e política que enfatiza a harmonia, a ordem e a moralidade identificado com o antigo modo de produção asiático, herdado pela camada dirigente do PCCh resista a dinâmica do marxismo proletário revolucionário de atuar como sujeito decisivo para a “ação repentina” que torne o proletariado chinês de “povo dominante” em classe “dirigente”, como diria Gramsci, para, além de exercer domínio sobre os meios de produção, também exerce uma liderança política, cultural e ideológica sobre do processo de evolução histórica universal em oposição ao imperialismo decadente e em favor de todos os povos oprimidos pelo mesmo.

 

6. A luta de classes nacional e internacional pelos preços, desdolarização e guerra tarifária

 

A China em sua “NEP de mil anos”, escapou da “Crise das tesouras”, contradição gerada na implementação da Nova Política Econômica (NEP) na URSS, em 1923, que promoveu a defasagem entre os preços dos produtos agrícolas e manufaturados. A China recentemente escapou da “Terapia de choque”, imposta pelo imperialismo aos estados operários da URSS e do Leste Europeu nos processos de restauração capitalista, que liberalizou de forma radical os preços e do comércio, simultaneamente a privatização do Estado, levando as economias desses países ao colapso, na década de 1990.

A China vem ganhando não apenas a guerra interna dos preços, mas a guerra dos preços globais, por isso se tornou a maior produtora e exportadora mundial de mercadorias.

Faz-se necessário estabelecer aqui as diferenças entre a dupla natureza das mercadorias, de valor de uso, valor de troca e as categorias valor, preço e dinheiro, que são conceitos distintos ainda que relacionados, como o próprio Marx elucida no capítulo I de O Capital. Toda mercadoria é produto do trabalho humano. O valor de uso consiste na função individual do objeto útil para os seres humanos. As outras formas de valor são criadas a partir da relação da mercadoria com as demais mercadorias, tanto pelo emprego do trabalho humano (uma mercadoria especial criadora das demais) na fabricação da mercadoria, ou seja, pela relação entre a força de trabalho e a mercadoria; quanto pela relação que essa mercadoria adquire com as outras mercadorias individuais; como pelo valor de mercado interno ou externo que essa mercadoria vai assumir. Valor é a expressão objetiva do trabalho humano na mercadoria.

É o trabalho humano que dá a unidade de medida social para comparação de mercadorias diferentes, essa unidade social é determinada pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria. Valor de troca é a relação da mercadoria com outras mercadorias, comparação que só pode existir pela existência do valor. Valor de troca é a forma de valor, ainda que não o seu conteúdo. Mas, assim como valor não é igual a valor de troca, valor de troca não é automaticamente o preço das mercadorias.

O preço das mercadorias é a manifestação monetária do valor de troca de uma mercadoria. O preço é influenciado por fatores como oferta e demanda, podendo divergir do valor em determinados casos. O dinheiro é uma mercadoria que funciona como medida de valor, meio de circulação, seu valor de uso é ser valor equivalente universal para a troca entre as mercadorias dentro de um mercado local, regional ou mundial. “Quando a produção de mercadorias atingiu um certo grau de desenvolvimento (...) Ele (o dinheiro) se torna a mercadoria universal dos contratos” (Marx, 2013, p. 213). Todavia, quando a produção de mercadorias transbordou os mercados nacionais, o mesmo ocorreu com o dinheiro. “Somente no mercado mundial o dinheiro funciona plenamente como a mercadoria cuja forma natural é, ao mesmo tempo, a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano in abstracto” (Marx, 2013, p. 213). Na China, com uma força de trabalho empregada de um bilhão de pessoas, a humanidade concentrou em um só país a maior força produtiva da história.

Em 1944, as nações capitalistas dominantes, EUA e Grã-Bretanha; então maiores produtoras mundiais de mercadorias, estabelecem em Bretton Woods que o dólar será “A” moeda padrão para as transações mundiais. Os EUA assumem essa hegemonia no momento em que a Grã-Bretanha, demolida violentamente na Segunda Guerra Mundial pela Alemanha, havia perdido a condição de “fábrica do mundo”.

Agora, a China, por ser a atual fábrica do mundo, é impelida a questionar a hegemonia do dólar, mesmo que não proponha que sua moeda seja automaticamente a substituta do dólar, mas que reivindique não pagar o “imposto de uso” para os EUA, nas trocas em que este último não esteja envolvido. A desdolarização é uma tendência da economia mundial em um processo em que os EUA já não são o maior produtor de mercadorias e a sua mercadoria dólar já passa a ser disfuncional, inflacionária para as trocas globais. Mas, sobretudo, esse impasse na disputa pela moeda mundial foi gerado porque, sendo a China a atual fábrica do mundo, é na China que “a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano in abstracto” é mais produzida do que em qualquer outra parte do globo. A guerra de tarifas de Trump contra o mundo é uma reação desesperada em cumprimento à ameaça que o mesmo fez logo após ser eleito, em novembro de 2024, de que iria sobretaxar os BRICS caso avançassem no projeto de desdolarização das transações comerciais.

 

7. A desigualdade que cresce no mundo capitalista, diminui na China

 

Na maioria dos países capitalistas, como bem atestam as pesquisas de Thomas Piketty, autor de O Capital no século XXI, a desigualdade aumentou. Uma das principais constatações do estudo é a de que houve um aumento das desigualdades de património após 30 anos e o fato de que as desigualdades do património sejam mais acentuadas nos EUA. A barbárie social crescente, decorrente da desindustrialização e financeirização do mundo ocidental (incluindo o Japão e a Austrália) produz a formação de imensos bolsões de miséria e populações vivendo em situação de rua como “sem tetos”, apesar do crescimento de imóveis vazios.

Em qualquer Estado capitalista a acumulação de capitais catapulta a miséria crescente. Sobre a lei da miséria crescente, para Marx e para os marxistas,

 

[...] dentro do sistema capitalista, todos os métodos para elevar a produtividade do trabalho capitalista, na medida em que se acumula o capital, tem de piorar a situação do trabalhador, suba ou desça sua remuneração [...] uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto (MARX, 2013, p.721).

 

Em sentido inverso, a China elevou mais de 700 milhões de pessoas da pobreza extrema (definida pelo Banco Mundial como renda inferior a US$ 2,15 por dia ou R$ 209 por mês), representando um dos maiores e mais rápidos avanços da humanidade na redução da pobreza na história. Este processo ocorreu simultaneamente as últimas quatro décadas que projetaram a China como potência mundial.

A redução da pobreza extrema esteve na esteira da duplicação da classe média consumidora e associada a elevação dos salários.

 

Em janeiro de 2025, milhões de funcionários públicos na China receberam um aumento salarial significativo, o primeiro em uma década. O aumento médio foi de cerca de 500 yuans (US$ 68,50 ou R$ 411,00) por mês. Esse ajuste salarial de janeiro visa estimular o consumo interno e impulsionar a economia em meio a desafios econômicos persistentes. Comparando dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) enquanto os salários médios na China cresceram 564% entre 2000 e 2015, países como Austrália, Alemanha, Coreia do Sul, Estados Unidos e Chile registraram aumentos de 17%, 10%, 24%, 15% e 35%, respectivamente. (Abert: Salário Médio dos Trabalhadores na China é o que mais cresce no mundo e impulsiona mercado interno, 03/02/2025).

 

Salários médios anuais na China, de 2012 a 2022

 

Em todas as sociedades capitalistas, a acumulação de capitais, ou seja, a existência de bilionários, gera miséria crescente. Todavia, na China hoje, com uma superacumulação de capitais, ou seja, com a edificação das maiores empresas multinacionais da história e bilionários, a população do campo ascendeu da miséria que vivia, os assalariados estão ganhando mais e a chamada classe média chinesa, que já era de 400 milhões de pessoas, estão dobrando de tamanho (ADB: The Rise of the Middle Class in the People's Republic of China, February 2011).

Os salários foram elevados diminuindo a dependência da China das oscilações e crises do mercado capitalista mundial, enquanto aumenta a dependência do mercado mundial em relação à China.

 

8. “Novo imperialismo”, “Estado desenvolvimentista weberiano” e “Capitalismo de estado”

 

O empoderamento da China no mercado mundial capitalista, enfrentando-se contra o imperialismo estadunidense no terreno econômico e diplomático, ao contrário de atrair, assusta muitos esquerdistas que passaram a caracterizar o país asiático como uma nova nação imperialista. Para esses esquerdistas vale o recado que Lenin enviou aos esquerdistas da época (mencheviques; esseristas de esquerda, militantes dos Socialistas Revolucionários russos; e anarquistas) quando defendeu a NEP em seu famoso documento “Sobre o imposto em espécie, o Significado da Nova Política Econômica e suas condições”:

 

O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista, calcada na última palavra da ciência moderna, sem uma organização estatal harmônica que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais rigorosa observância de uma única norma na produção e na distribuição dos produtos. Nós, marxistas sempre falamos e não vale a pena gastar sequer dois segundos para sobre isso ? conversar com pessoas que não compreendem pelo menos isso (os anarquistas ? uma boa parte dos esseristas de esquerda).

Ao mesmo tempo, o socialismo inconcebível sem o domínio do Estado pelo proletariado: isto também elementar. E a história (da qual ninguém, exceto os obtusos mencheviques de primeira classe, esperava que o socialismo 'integral' se desse de maneira suave, tranquila, fácil simples) seguiu um caminho tão original que gerou, até 1918, duas metades de socialismo separados; uma perto da outra, exatamente como dois pintinhos sob a mesma asa do imperialismo internacional. A Alemanha e a Rússia encarnaram, em 1918, do modo mais patente, a realização material das condições econômico-sociais, produtivas e econômicas do socialismo, de um lado, e de suas condições políticas, de outro. (Lenin, Sobre o imposto em espécie, 1922, p. 148).

 

As palavras de Lenin caem como uma luva para compreendermos que: 1) as condições atuais da China expressam o domínio da grande técnica capitalista, calcada na última palavra da ciência moderna, sob uma organização estatal harmônica que submete dezenas de milhões de pessoas à mais rigorosa observância de uma única norma na produção e na distribuição dos produtos; 2) e a relação entre a China e seus parceiros como Rússia, Irã e, em certa medida, os BRICS, que encarnaram, em 2025, “do modo mais patente, a realização material das condições econômico-sociais, produtivas e econômicas do socialismo” em um estágio superior de condições produtivas e econômicas, mas vacilam em desafiar geopoliticamente a hegemonia do sistema imperialista.

A caracterização de que a China encarna um novo tipo de imperialismo não corresponde à realidade. A partir dessa caracterização de que a China é imperialista, a situação se agrava, pois os mencheviques, esseristas e anarquistas do século XXI, sejam eles oriundos de matizes stalinistas, maoístas ou trotskistas, que esperavam de pronto a realização de um “socialismo integral” e, como a realidade não atendeu de imediato suas idealizações, aproveitaram para aderir à propaganda ideológica do inimigo imperialista, reivindicando uma política de duplo derrotismo diante dos conflitos entre a China e os EUA, assim como fazem na guerra entre a OTAN e a Rússia, que tem como palco a Ucrânia. Entendemos que essa é uma forma tácita, envergonhada e covarde de aliar-se ao imperialismo contra a Rússia e a China na escalada do conflito mundial.

Os marxistas têm lado em todos os conflitos que envolvem o imperialismo e nações por ele oprimidas (ainda que essa opressão seja tarifária ou em forma de sanções), ficam incondicionalmente no lado oposto ao do imperialismo.

Parte dos esquerdistas centristas, que se reivindicam marxistas, caracterizam a China como uma espécie de “Capitalismo de estado”, e não poucos entre esses vem avançando dessa posição centrista para cravar que a China representa a evolução do capitalismo de estado para um imperialismo de novo tipo, afinal, não se pode dizer que o governo chinês é um mero comitê gestor dos negócios da burguesia interna ou externa, por mais que se reconheçam excepcionalidades na suposta versão chinesa de capitalismo de estado.

Muitos acadêmicos caracterizam a China como um “Estado desenvolvimentista weberiano” (So, 2003; Dickson, 2008; McNally e Wright, 2010; van der Pijl, 2012, 2016; Yao, 2010, 2011), portanto, um estado tecnocrático capitalista. O problema desse raciocínio está em acreditar que o Estado teria total capacidade de manter o controle sobre a burguesia nacional, desprezando a luta de classes.

Essas duas caracterizações consideram uma convivência relativamente cooperativa e harmônica entre o Estado e a burguesia chinesa e minimizam a existência de luta de classes entre capital e trabalho na China e no planeta envolvendo o papel global ocupado pela China na luta de classes, a despeito de sua camada política dirigente querer ou não ocupar esse papel.

Ambas possuem uma sustentação argumentativa e política cada vez mais débil, principalmente depois da pandemia e do fato de que as relações entre o Estado e os bilionários chineses azedaram, devido à fuga de capitais promovida pelos segundos e pela repressão do primeiro.

Desde 2023, a “aliança tensa” entre a burguesia nacional e o Estado, que marcou o período 2009-2022, vem sendo rompida pelo governo Xi Jimping:

 

[...] a pressão sobre as elites empresariais não diminuiu, e agora que as fronteiras estão abertas, muitos estão considerando planos de saída. No mês passado, Hui Ka Yan, fundador da em dificuldades imobiliárias Evergrande e ex-homem mais rico da Ásia, foi preso por crimes não especificados. Bao Fan, um renomado banqueiro de investimentos antes visto como um fazedor de reis no mundo dos negócios de tecnologia, foi detido em fevereiro e não foi visto desde então. Outros executivos foram proibidos de sair.

O cenário atual é uma mudança marcante em relação à década de 1990 e ao início dos anos 2000, quando a China se preparava para ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 e implementava uma série de reformas de mercado que permitiram aos empreendedores chineses acumular enormes riquezas. Aquela foi uma era em que ganhar dinheiro vinha antes de qualquer outra coisa. Mas, sob Xi, que consolidou seu poder pessoal mais do que qualquer outro líder desde Mao, a ênfase voltou ao controle político, em vez da liberdade econômica.

‘A punição arbitrária imposta à classe rica é diferente de tudo o que vimos desde a década de 1990’, diz Victor Shih, professor de economia política da China na Universidade da Califórnia em San Diego. ‘Isso levou muitos dessa classe a pensar em diversificar seus negócios para fora da China [...]Chineses ricos também buscam maneiras de se mudar, e também de levar seu dinheiro, para fora da China. Cerca de 13.500 indivíduos com alto patrimônio líquido devem deixar a China este ano, ante 10.800 no ano passado, de acordo com a Henley & Partners, uma consultoria de imigração.

‘O governo chinês joga para valer, como Jack Ma e muitos outros descobriram”, diz David Lesperance, consultor independente que auxilia pessoas com patrimônio líquido altíssimo a se mudarem. “Portanto, precisamos analisar como proteger seu patrimônio e seu bem-estar.’’” (The Guardian: Os bilionários da China procuram transferir o seu dinheiro e a si próprios para fora. 30/10/2023).

 

Esse movimento é real, aparentemente consistente e escandaliza a imprensa imperialista britânica que aumenta a demonização da China. Foi reduzida a participação do capital privado e ampliada a influência do Estado na economia das empresas nos últimos cinco anos. Essa tendência é evidente no número crescente de empresas estatais e empresas de propriedade mista cuja participação majoritária pertence ao partido-Estado chinês.

 

O painel ‘a’ do gráfico mostra a participação na capitalização de mercado agregada das 100 maiores empresas listadas na China, por propriedade da empresa, enquanto o painel ‘b’ mostra a participação na receita agregada de todas as empresas chinesas incluídas na Fortune Global 500, também por propriedade da empresa.

Este rastreador baseia-se na metodologia definida em nosso Documento de Trabalho de 2022. O setor privado é definido restritivamente como empresas com menos de 10% de participação estatal. O setor estatal inclui tanto empresas de propriedade mista (EMs), nas quais o Estado detém entre 10% e 50%, quanto empresas estatais (SOEs) de propriedade majoritária.

A participação das empresas privadas na capitalização de mercado entre as 100 maiores empresas listadas da China caiu de um pico de cerca de 55% em meados de 2021 para apenas 33% no final de junho deste ano, um declínio de mais de 40% em apenas três anos (ver painel ‘a’). Ao mesmo tempo, a participação das empresas estatais, ou seja, aquelas de propriedade majoritária do partido-Estado chinês, aumentou de forma constante de menos de um terço para cerca de 54% [...]

Esses desenvolvimentos parecem cada vez mais estruturais. A postura das autoridades desde 2020, incluindo o endurecimento regulatório e os lockdowns sem COVID, parece ter causado danos duradouros à economia privada chinesa, cujo dinamismo foi uma característica definidora de seu milagre econômico nas últimas quatro décadas. Quase 20 meses após a reabertura da China devido à COVID, o setor privado ainda não se recuperou, apesar de muitas declarações e gestos pró-privados da liderança chinesa. Em suma, as descobertas corroboram a visão de que a China continua a sofrer com a " COVID econômica prolongada ".

 

Os painéis ‘a’ e ‘b’ são parte integrante do artigo: China's private sector has lost ground as state sector has gained share among top corporations since 2021, escrito por Tianlei Huang e Nicolas Véron em setembro de 2024 para o Peterson Institute for International Economics.

Tudo indica que após a epidemia de Covid-19 o governo Xi Jimping aproveitou para aprofundar e consolidar uma tendência estatizante estrutural, aumentando a concentração dos meios de produção nas mãos do estado.

 

O ex-presidente chinês Hu Jintao (2003 e 2013) é retirado de seu lugar, durante a cerimônia de encerramento do 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, no Grande Salão do Povo de Pequim, em 22 de outubro de 2022 — Foto: REUTERS/Tingshu Wang. Xi Jimping sucedeu a Hu, o gesto de retirada forçada parece querer marcar a ruptura com um período em que o imperialismo identificava como “de abertura ao mundo exterior e de maior tolerância a novas ideias”.

 

Parece, o que pode não ser uma tendência de fôlego consolidado, que as formas de propriedade e relações de produção de caráter capitalista que se desenvolveram a partir do final dos anos 1970 não seguem evoluindo como nas últimas quatro décadas e se agudiza a luta entre as relações de produção socialistas e capitalistas no quadro nacional e internacional, em última instância, entre o capital monopolista mundial e o proletariado chinês. Essa conjuntura progressista enseja a negação da negação em favor da continuidade da revolução iniciada em 1949.

Debatendo sobre a terminologia de “capitalismo de estado”, o dirigente da revolução bolchevique, Leon Trotsky (1879-1940), destaca as perspectivas revolucionárias da estatização estrutural da economia:

 

Sob um "capitalismo de Estado" integral, essa lei da taxa igual de lucro seria realizada não por vias tortuosas – isto é, pela concorrência entre diferentes capitais –, mas imediata e diretamente pela contabilidade estatal. Tal regime, contudo, nunca existiu e, devido a profundas contradições entre os próprios proprietários, nunca existirá – tanto mais que, em sua qualidade de repositório universal da propriedade capitalista, o Estado seria um objeto por demais tentador para a revolução social. (Leon Trotsky, A Revolução Traída; Capítulo 9 - Relações sociais na União Soviética1. Capitalismo de Estado, 1936).

 

Segundo o pensamento do revolucionário ucraniano, o monopólio estatal da taxa de lucro, eliminando a concorrência entre diferentes capitais, torna ainda mais favorável a contabilidade e o controle estatal, logo, favorece a planificação econômica a curto, médio e longo prazo.

Ele considerava que tal regime nunca existiu e nunca poderia existir. De fato, o atual regime chinês, assim como o regime político soviético em seus primeiros anos foi o que mais se aproximou desse regime hipotético em que as “profundas contradições entre os proprietários” sofrem uma intervenção estatal que tende a superar com medidas socialistas a qualidade de representante único do monopólio da propriedade dos meios de produção.

Trotsky não vislumbrava, nem podia na época, que o país hipotético a instalar o “capitalismo de estado integral” tivesse um regime político estabelecido por uma revolução social que se manteve no poder por longos 76 anos. A ruptura e superação da etapa da “aliança tensa” (2009-2020) entre o Estado chinês e a burguesia chinesa em fuga, aponta para o aprofundamento de uma tendência revolucionária por demais tentadora para o regime político estabelecido pela revolução chinesa de 1949.

Se a China fosse capitalista ou imperialista, há que se convir que seria um modelo muito raro, não porque acreditamos existir um modelo clássico ideal à qual a China devesse ser comparada, mas porque, na verdade, apesar do assalariamento da força de trabalho e relações de troca e acumulação capitalistas existentes na China é muito forçoso defini-la como Estado capitalista porque várias leis tendenciais da economia capitalista, postuladas por Marx; e da economia imperialista, postuladas por Lenin, não se aplicam no país asiático.

Por exemplo, a lei da miséria crescente, decorrente da acumulação de capitais; a modificação da composição técnica do capital, ficando a parte variável cada vez menor em relação à parte constante do capital, também decorrente da acumulação capitalista; do processo anterior derivaria também a queda tendencial da taxa de lucros; formação de um exército industrial de reserva. Mas, nada disso se comprova. Talvez, tal como supõe Lenin em seu “Imperialismo, fase superior do capitalismo” (1916), o que se pode inferir dos prognósticos de Lenin está no fato de que certos elementos avançados da economia chinesa possam estar gestando o oposto ao imperialismo, percebido pelo imperialismo mais do que por muitos esquerdistas. Por exemplo: quando ele supõe que a economia monopolista

 

[...] chegou a um determinado grau muito elevado de seu desenvolvimento, quando algumas características fundamentais do capitalismo começam a transformar-se em sua antítese, quando ganham corpo e se manifestam em toda linha traços da época da transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada... O monopólio é a transição do capitalismo para um regime superior (Lenin, 2002, p. 67)

 

Se algumas características fundamentais do capitalismo começam a transformar-se em sua antítese e se o monopólio um indício da transição do capitalismo para um regime superior, mais avançado estará o processo em que o monopólio está sob a tutela da planificação estatal socialista.

 

9. Um sistema em transição ameaçado por crescentes contradições estruturais e geopolíticas

 

Há uma constante em todos os países capitalistas: o Estado é o representante político dos interesses dos capitalistas. Os partidos burgueses ou operários burgueses, como o Labour Party, na Grã-Bretanha ou o Partido dos Trabalhadores no Brasil, exercem o governo temporário, mas não o poder absoluto sobre o regime político, que é o conjunto de instituições políticas por meio das quais um Estado se organiza de maneira a exercer o seu poder sobre a sociedade. Mas, mesmo nos casos do LP e do PT, o Estado não é um instrumento do proletariado contra a burguesia, no máximo, quando muito, existem governos de contenção dos apetites mais vorazes da burguesia, fazendo concessões crescentes às políticas neoliberais.

Em todos os estados operários que assim se constituíram após as revoluções sociais do século XX, partidos comunistas foram os principais ou únicos partidos governantes e dirigentes dos regimes instituídos. Isso se mantém em Cuba, Coréia do Norte, no Vietnã e na China.

O Estado chinês atual é uma criação da revolução de 1949 e de todas as mudanças, contradições, lutas internas realizadas pelo Partido Comunista Chinês desde então. Nunca, nenhum estado capitalista da história foi governado por um partido comunista, sequer por 5 anos, ainda menos por 76 anos. Na China, por mais que tenham havido lutas internas palacianas entre frações do PCCh, o regime político é o mesmo que foi instituído em 1949.

Hoje, o PCCh controla 96 conglomerados empresariais estatais, quase todos monopólios mundiais e os militantes do partido estão implantados em todos os corpos executivos de todas as empresas com mais de 100 empregados. O PCCh controla os quatro maiores bancos do planeta (Industrial and Commercial Bank of China Limited, China Construction Bank, Agricultural Bank of China, Bank of China). É esse controle que impede que o sistema imperialista e seus organismos “multilaterais”, criado e desenvolvidos após a segunda guerra mundial, bem como o todo-poderoso capital financeiro mundial controlem a China. Ao mesmo tempo, esse poder econômico tem favorecido a criação de um novo sistema de organismos multilaterais dos povos oprimidos, como os BRICS, Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês New Development Bank), a Organização de Cooperação de Xangai.

 

Membros da Shanghai Cooperation Organisation (SCO), Organização de Cooperação de Xangai, organismo multilateral eurásica política, econômica, de segurança internacional e defesa mútua estabelecida pela China e pela Rússia em 2001.

 

O partido comunista organiza e expressa contraditoriamente os interesses do proletariado, do campesinato, da pequena burguesia e da burguesia nacional, conforme as quatro estrelas da bandeira chinesa expressam as quatro frações em que se divide o povo chinês. A força numérica organizada da classe trabalhadora, de um bilhão de pessoas, como força de trabalho ativa, é o que pressiona a orientação das ações defensivas de contenção dos apetites dos bilionários chineses e dos monopólios privados do imperialismo. São esses os aspectos que fazem da China um estado operário e não um estado capitalista ou uma potência capitalista como os componentes do G-7.

Já se disse que grandes poderes geram grandes responsabilidades (Stan Lee). Essa mesma poderosa nação, que não pode ser tratada apenas como um mero Estado-nação da era moderna capitalista, mas já como um núcleo de um sistema internacional que é o motor produtivo do planeta que abastece o mercado mundial de mercadorias, tem se desresponsabilizado da defesa dos povos oprimidos do globo.

A China não vai além de algumas tímidas manifestações diplomáticas, na defesa dos demais povos e nações oprimidos pelo imperialismo e dos trabalhadores do resto do mundo sob os piores ataques dos estados e exércitos do capital internacional em todo mundo oprimido, como na Palestina, por exemplo. Mesmo comparados a programas institucionais, como o de Exportação de serviços de saúde de Cuba, que teve início na década de 1960, o Estado da China nem de longe oferece qualquer coisa semelhante aos trabalhadores do mundo irmãos dos chineses. A China nem sequer se move para ajudar países em dificuldades econômicas agravadas pela opressão e sanções imperialistas como Cuba, Venezuela, o Iêmen ou o Irã. Uma força tarefa chinesa em apoio a Cuba ou Venezuela romperia todas as amarras das sanções e bloqueios impostos aos dois países e possibilitaria um crescimento extraordinário de suas economias e sociedades.

No plano internacional, da geopolítica, a China se limita a tímidas manifestações de protestos e votos diplomáticos nos organismos multilaterais do sistema imperialista, mas não realiza qualquer internacionalismo proletário contra a exploração e as opressões exercidas pelo grande capital internacional contra o proletariado e os povos oprimidos, em forma de agressões, sanções e bloqueios.

O Estado operário chinês está agora em uma encruzilhada entre capitalismo e socialismo. O imperialismo descobriu tarde o perigo que ajudou a criar quando impulsionou o desenvolvimento produtivo da China transferindo suas fábricas maiores para o país asiático. As perspectivas dessa encruzilhada serão decididas pela luta anti-imperialista e comunista revolucionária tanto na arena mundial, bem como pela disputa de poder entre as quatro classes na China.

As políticas da burocracia do PCCh de ficar quieto na geopolítica mundial, movendo-se apenas vagarosamente na disputa por mercados, esperando ganhar tempo diante da decadência do sistema imperialista e esperando serem poupadas de um ataque mais fulminante agora, debilitam a China no enfrentamento com o capitalismo internamente e extremante e podem não apenas comprometer sua evolução em direção ao socialismo, mas sua existência como nação independente.

Uma intervenção chinesa na questão palestina, com toda a capacidade produtiva e do alto desenvolvimento da geoengenharia do país, reconstruiria Gaza, Cisjordânia, o Líbano e o Iêmen, arrasados pela escalada genocida sionista-imperialista, em menos de um ano. Tal intervenção certamente pode conduzir a um enfrentamento militar com Israel e EUA, mas também pode conter a escalada de recolonização do ocidente asiático desempenhada por Washignton e Tel Aviv, espaço vital e que não pode ser completamente substituído pela rota do Ártico, para o desenvolvimento da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, BRI), uma iniciativa chinesa exponencialmente superior ao Plano Marshall dos EUA.

 

O projeto da Nova Rota da Seda da China atinge 60 países a mais, uma população 12 vezes maior e recebeu um investimento 10 vezes maior do que o Plano Marshall, o maior projeto de investimento externo dos EUA.

 

O imperialismo pretende fechar o cerco do comércio marítimo mundial – crucial para a economia global, responsável por 80% do volume de comércio mundial – contra a China nos canais do Panamá, Suez, e nos estreitos de Bab El Mandab e Málaca.

O nacionalismo nesse aspecto é a antítese do internacionalismo proletário e socialista e, portanto, pesa no retrocesso da China em direção ao capitalismo. As deformações tecnocráticas e capitalistas estão para o pós-capitalismo do século XXI, o que a burocratização da URSS estava para o pós-capitalismo do século XX. A política da burocracia dirigente pavimenta a derrota.

A atual guerra comercial entre a China e o imperialismo, como todos os outros conflitos entre a China e o imperialismo foram todos por iniciativas do imperialismo e não dos comunistas não internacionalistas chineses.

O PCCh busca uma convivência pacífica com o imperialismo. É o imperialismo que, de seu lado, não tolera o crescimento chinês. Então, é graças à pressão inimiga que essa política ilusória de convivência pacífica se torna impossível e a direção do partido é empurrada para a luta anti-imperialista.

A acumulação do capital e o modo de produção especificamente capitalista se desenvolvem como dois fatores que, na produção conjugada dos impulsos que se dão reciprocamente, modificam a composição técnica do capital, aumentando os custos do capital constante. Mas, como vimos e comprovamos na luta pela IA entre a China e as Big Techs dos EUA, a China vem reduzindo os custos do capital constante.

Nosso programa se deixou contaminar pela influência anti-defensista do pseudo-trotskismo e pelo impressionismo com a ofensiva ideológica imperialista, fazendo generalização e igualando os Estados operários asiáticos com as derrotas que sofremos na Europa Oriental e na URSS, sem fazer análise concreta da situação concreta não apenas na China, como também no Vietnã, Laos, Camboja, mantendo o status de Estado operário apenas para a Coreia do Norte e Cuba.

Possuíamos uma caracterização centrista que foi derrotada pela evolução da relação concreta entre a China e o imperialismo nos últimos anos. Apesar de fazermos várias caracterizações corretas acerca da decadência do sistema imperialista financeirizado e de também corretamente defendermos a China e a Rússia contra todas as investidas do imperialismo, acreditávamos que a China e Rússia se encontravam em um estágio similar e se tratavam de novas formações sociais, que eram “Estados capitalistas, não imperialistas, deformados positivamente por décadas de desenvolvimento não-capitalista” (LCFI Statement: Marxism and the Post-Counterrevolution Cold War: The Diminution of Imperialism and the Rise of Non-Imperialist Capitalism, Deformed by Decades of Non-Capitalist Development, in Russia and China).

 

Sob essa política centrista e impressionista, nos apressamos à reconhecer que já havia sido consumada por completa a restauração capitalista na China, apesar das imensas excepcionalidades do Estado chinês tanto para a luta de classes interna como internacional.

Nem o conflito da Praça Tianamen (1989), em Pequim, nem o ingresso da China na OMC (1992) alteraram o regime político ou o modo de produção da revolução de 1949. Tianamen foi o fracasso de uma contrarrevolução colorida liberal-anti-burocrática, das muitas promovidas pela CIA entre 1989 e 1991. O ingresso da China na OMC foi apenas uma formalidade para tentar adaptar o país às regras de comércio internacional, todavia, apesar das reformas privatistas, a China esteve longe de adotar a terapia de choque, cujo laboratório original foi o Chile de Pinochet, que desregulamentava completamente os preços, o comércio e privatizava a economia, como ocorreu na Rússia de Yeltsin.

A prova de que Rússia e China seguiram padrões restauracionistas qualitativamente diferentes é comprovável também pelas consequências para a Rússia da aplicação da terapia de choque, a diferença da política de sistema de preços de via de mão dupla:

 

O resultado macroeconômico das políticas de reforma de mercado na China foi o oposto do ocorrido na Rússia: a inflação foi baixa ou moderada, mas crescimento da produção foi extremamente rápido (ver figuras abaixo). Em vez de destruir o sistema de preços e planejamento existente, com a esperança de que economia de mercado surgisse de alguma forma 'das ruínas", a China adotou uma abordagem experimentalista, a qual usou as realidades institucionais dadas para construir um novo sistema econômico. O Estado recriou gradualmente os mercados a partir das margens do antigo sistema. [...] as reformas na China foram graduais - não apenas em termos de ritmo, mas também de movimento a partir das margens do antigo sistema industrial em direção ao seu núcleo. Desencadeando uma dinâmica de crescimento e reindustrialização, a entrada gradual no mercado acabou mudando toda a política econômica, ao mesmo tempo que o Estado mantinha o controle sobre os setores estratégicos da economia. A manifestação mais proeminente da abordagem da China é o sistema de preços de via de mão dupla, que é o oposto da terapia de choque. Em vez de liberar todos os preços em um grande big bang, o Estado continuou a planejar o núcleo industrial da economia e a fixar os preços dos bens essenciais, enquanto os preços dos produtos excedentes e dos bens não essenciais eram sucessivamente liberados. Como resultado, os preços começaram a ser gradualmente determinados pelo mercado. O sistema de via de mão dupla não é simplesmente uma política de preços, mas também um processo de criação e regulação do mercado por meio da participação do Estado. (Webber, 2023, p. 29)

 

Participação da China e da Rússia no PIB mundial (1990-2017). A “Terapia de Choque” quebrou a economia russa.Índice de preços ao consumidor (IPC) em PIB real 1980-2016) na URSS e Rússia (a partir de 1990). Após a “Terapia de Choque” os preços internos dispararam na Rússia.

 

Evidentemente, a diferença se deu pelo controle do estado sobre a economia e do controle do Estado por um Partido centralizado, reivindicando as tradições revolucionárias e comunistas da revolução social de 1949.

Outro elemento que precisa ser superado em nossa elaboração anterior, e o presente documento aponta nesse sentido, está na necessidade de romper radicalmente com as influências niilistas da ideologia triunfalista do imperialismo sobre o movimento comunista internacional, com a influência implícita das teses imperialistas do fim da história (F. Fukuyama). Acreditávamos que a luta pelo socialismo sofreu uma derrota de longo prazo, quase estratégica, após as derrotas do processo 89-91.

Em que pesem nossos equívocos, seguimos reunidos aos setores progressistas do trotskismo e do centrismo stalinista que defendem a China e os países oprimidos (Rússia e Irã, inclusive) contra o imperialismo.

Não fomos consequentes em separar na medida necessária a crítica da política da crítica da economia. De acordo com a história da ciência política, uma revolução social e política é possível em países atrasados, muito atrasados, como o Camboja ou até em meio pais, como na península da Coreia. Mas o desenvolvimento das bases socais para o socialismo não é possível sem um desenvolvimento das forças produtivas.

Em O capital, de fato, Marx afirmou que "o modo de produção capitalista se apresenta [...] como uma necessidade histórica para a transformação do processo de trabalho num processo social". Para ele, a força produtiva social do trabalho se desenvolve gratuitamente sempre que os trabalhadores se encontrem sob determinadas condições, e é o capital que os coloca sob essas condições". Marx compreendeu que as circunstâncias mais favoráveis para o comunismo só teriam podido realizar-se com a expansão do capital. O desenvolvimento das bases sociais para o socialismo não é possível sem o desenvolvimento das forças produtivas", o que parece ser o caso da economia da China.

Por isso, o partido mais revolucionário do mundo, o bolchevique, foi obrigado a realizar "um passo atrás", com a NEP. Nossa crítica ao processo chinês reside em que a NEP chinesa foi operada, desde Mao Tsé Tung até Xi Jimping, passando por todos os outros, em um processo de conciliação de classes com o principal inimigo da humanidade, o imperialismo estadunidense.

Outro argumento contra o caráter operário do Estado chinês reside na existência de bilionários, sendo o segundo país com mais bilionários da economia mundial. A existência de bilionários não representa um estado capitalista se o estado não for controlado por esses bilionários. A existência de bilionários só atesta que sob o estado operário coexistem contradições de normas burguesas de distribuição e de que a própria burocracia possui um caráter burguês, como Trotsky atestou na URSS, em que pese, a diferença da China contemporânea, a burguesia ter sido eliminada como classe social da URSS:

 

A afirmação de que a burocracia de um Estado operário tem um caráter burguês deve parecer não apenas ininteligível, mas completamente sem sentido para pessoas com uma mentalidade formal. No entanto, tipos de Estado quimicamente puros nunca existiram e não existem em geral. A monarquia prussiana semifeudal executou as tarefas mais importantes da burguesia, mas as executou à sua maneira, ou seja, em um estilo feudal, não jacobino. No Japão, observamos ainda hoje uma correlação análoga entre o caráter burguês do Estado e o caráter semifeudal da casta dominante. Mas tudo isso não nos impede de diferenciar claramente entre uma sociedade feudal e uma burguesa. É verdade que se pode objetar que a colaboração entre forças feudais e burguesas é incomensuravelmente mais fácil de realizar do que a colaboração entre forças burguesas e proletárias, visto que o primeiro caso apresenta um caso de duas formas de exploração de classe. Isso é completamente correto. Mas um Estado operário não cria uma nova sociedade em um dia. Marx escreveu que, no primeiro período de um Estado operário, as normas burguesas de distribuição ainda são preservadas. (Sobre isso, ver A Revolução Traída, seção Socialismo e Estado, p. 53.) É preciso ponderar bem e refletir sobre isso até o fim. O próprio Estado operário, como Estado, é necessário justamente porque as normas burguesas de distribuição ainda permanecem em vigor.

Isso significa que mesmo a burocracia mais revolucionária é, em certo grau, um órgão burguês no Estado operário. É claro que o grau dessa burocratização e a tendência geral de desenvolvimento têm importância decisiva. Se o Estado operário perde sua burocratização e gradualmente se desintegra, isso significa que seu desenvolvimento caminha na direção do socialismo. Ao contrário, se a burocracia se torna cada vez mais poderosa, autoritária, privilegiada e conservadora, isso significa que, no Estado operário, as tendências burguesas crescem às custas das socialistas; em outras palavras, aquela contradição interna que, em certo grau, se aloja no Estado operário desde os primeiros dias de sua ascensão, não diminui, como exige a "norma", mas aumenta. No entanto, enquanto essa contradição não tiver passado da esfera da distribuição para a esfera da produção e não tiver destruído a propriedade nacionalizada e a economia planificada, o Estado permanece um Estado operário. (Trotsky, Not a Workers’ and Not a Bourgeois State?, 1937).

 

Em um estado transitório entre o capitalismo e o socialismo seguem havendo luta de classes e normas burguesas de distribuição, que agitam as lutas da classe trabalhadora. Pelos dados empíricos que apresentamos ao longo desse documento verifica-se que a propriedade dos meios de produção se torna cada vez mais nacionalizada nos últimos anos, sobretudo depois da pandemia, e que, em nenhum momento das últimas quatro décadas a economia deixou de ser planificada.

Se, como marxistas, compreendemos que o Estado é, em última instância, o destacamento especial de homens armados, há que se perguntar se hoje as forças armadas chinesas intervêm em favor ou contra os interesses dos bilionários, na consolidação do poder dos mesmos sobre os conglomerados estatais na China. Na Rússia, entre 1985 e 1991, uma fração hegemônica da burocracia modificou o regime político, social e econômico do país e operou a restauração capitalista. Isso não ocorreu na China.

A atual guerra econômica entre os EUA e o Estado operário chinês emerge como antessala de uma terceira guerra mundial, entre o sistema imperialista e o bloco de nações oprimidas dirigidas por China, Rússia e Irã. Mas outras questões da luta de classes interna são ainda mais perigosas porque podem comprometer o futuro do núcleo do poder da economia chinesa: problemas estruturais com o proletariado.

As vantagens comparativas, alcançadas pela China no desenvolvimento das forças produtivas, ocorreram às custas das relações de produção. Em um primeiro momento, a formação do proletariado urbano chinês da última década do século XX se assemelhou ao processo da acumulação originária de capital britânica do século XVI, quando tem início a era capitalista (Marx, 2017, p. 787). As pressões das jornadas de trabalho esgotantes, por um lado, e as pressões pequeno-burguesas, por outro, podem conduzir a China a uma crise social que aborte o curso da transição para o socialismo.

A jornada de trabalho chinesa é uma das mais extenuantes. Se, em várias partes do mundo, há lutas pela redução da jornada de 6x1, ou seja, pelo fim do trabalho em seis dos 7 dias por semana, na China, contrariando a própria legislação trabalhista, a jornada é de 6 ou 7 dias por semana, de 9h da manhã às 21h, resultando em uma jornada de 72h semanais de trabalho.

A cultura "996" tem sido associada a problemas de saúde física e mental, estresse, burnout e dificuldades em conciliar o trabalho com a vida pessoal. A pressão para trabalhar excessivamente também pode levar à falta de criatividade, inovação e satisfação no trabalho. Essa prática, apesar de não ser oficialmente obrigatória em todas as empresas, é comum em setores como tecnologia e startups chinesas.

Muitos jovens das novas gerações realizam um movimento individual de resistência a essas jornadas de trabalho se opondo a trabalhar ou reivindicando tempo livre. O termo "involução" (ou neijuan em chinês, traduzido literalmente como "parafuso") passou a ser amplamente usado para expressar uma sensação de exaustão derivado do trabalho e criticar o processo em que o crescimento populacional não resulta em melhorias de produtividade ou inovação. O bilionário Jack Ma (dono do conglomerado Alibaba, uma espécie de Jeff Bezos, dono da Amazon, chinês), é um dos defensores da Cultura de 996, que ele chama de "bênção".

Alguns movimentos em favor do tempo livre e pela redução das jornadas e dos ritmos de trabalho tem sido explorados pela imprensa imperialista.

 

O termo antropológico "involução" (ou neijuan em chinês, traduzido literalmente como "parafuso") refere-se a um conceito social segundo o qual o crescimento populacional não resulta em melhorias de produtividade ou inovação. Hoje, o termo é amplamente usado para expressar uma sensação de exaustão. A tendência começou nos campi das universidades de elite do país com a publicação de imagens de estudantes trabalhando duro na internet. Essas imagens viralizaram no ano passado. Em uma das fotos, um estudante da Universidade de Tsinghua usava seu laptop enquanto andava de bicicleta. O aluno foi batizado de "rei 'involuído' de Tsinghua". A ideia da involução começou a permear toda a geração jovem da China, com eco especial entre os millennials e a chamada geração Z. No Weibo, a maior rede social do país, palavras-chave relacionadas à involução foram vistas mais de 1 bilhão de vezes. O termo também foi incluído em um ranking popular das 10 palavras da moda do ano passado.

A ideia por trás do tang ping — não trabalhar muito, ficar satisfeito com objetivos alcançáveis e permitir-se um tempo para relaxar — foi elogiada por muitos e inspirou inúmeros memes. Isso se tornou uma espécie de movimento espiritual. (Fan Wang e Yitsing Wang, BBC, 29 junho 2021 'Neijuan': a nova geração que se rebela contra trabalho excessivo por sucesso na China).

 

Apesar do desenvolvimento das forças produtivas, das políticas de aumento salariais, arrancadas por muitas greves operárias – o que favorece o mercado consumidor interno, diminuindo a dependência da China em relação ao mercado internacional – , apesar da redução da miséria para 700 milhões de pessoas, a Cultura 996 é um componente do retrocesso nas relações de produção, de exploração da mais valia absoluta e desestimula as jovens gerações proletárias na reprodução geracional da força de trabalho.

A luta da classe trabalhadora pelo tempo livre, simultânea ao aumento da produtividade, desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia, deve ser uma das prioridades para os trabalhadores e para o futuro da China. Uma campanha agressiva pela redução da jornada de trabalho com a manutenção da política de valorização salarial também reduziria os focos da propaganda imperialista por “democracia” e “liberdade”, contra a suposta escravidão chinesa, propaganda que busca se apoiar em contradições reais da sociedade em favor de revoluções coloridas pró-imperialistas.

 

10. Pelo internacionalismo socialista!

 

Em síntese, passamos a caracterizar a China como um Estado operário deformado, que pode tornar-se um núcleo avançado do sistema internacional em transição para o socialismo. Deve liderar uma coalizão dos oprimidos com armas nucleares para defender povos que se encontram sob uma aberta política de extermínio, como os palestinos. Mas isso só será possível se o seu Partido Comunista dirigente transformar seu nacionalismo, progressista em relação ao imperialismo, em internacionalismo socialista.

Isso requer uma grande mudança política, e é improvável que aconteça espontaneamente a partir da estrutura política existente do PCCh. Correntes comunistas genuínas e internacionalistas devem se cristalizar entre os comunistas chineses, com base em um programa que busque conscientemente colocar os recursos do Estado operário chinês, muito avançado, mas ainda deformado, de forma consciente e consistente, à disposição da revolução mundial e da luta contra o imperialismo. Isso deve se basear, em particular, na necessidade estratégica da Frente Única Anti-Imperialista, conforme formulada pela Internacional Comunista no período em que ainda era animada pelo programa bolchevique de revolução internacional. Precisamos de um novo Partido Mundial da Revolução Socialista, e os comunistas chineses devem desempenhar um papel crucial em sua criação. Seja sob a bandeira do PCCh ou de uma nova, é uma questão em aberto. A classe trabalhadora com consciência de classe precisa estar totalmente no poder dentro do Estado operário chinês, para colocar seus poderosos recursos totalmente à disposição da revolução mundial – isso seria uma mudança revolucionária em relação à política de coexistência pacífica e de evitar conflitos com o capitalismo.

Seja como for, seguimos defendendo incondicionalmente a China contra toda e qualquer investida militar, diplomática, política e tarifária do imperialismo.

Acreditamos que a guerra econômica ou nuclear do imperialismo contra a China periga abortar o atual curso da transição do país, mas, parafraseando Trotsky, consideramos infinitamente ainda mais perigosas 1) as sequelas não superadas do processo de implantação de medidas de mercado, como a Cultura 996, que adoece e deprime o proletariado chinês; 2) a não expropriação e estatização sem indenização do conjunto dos monopólios burgueses; 3) a renúncia do governo da China a defender econômica, geopolítica e militarmente os demais povos oprimidos.

Defendemos a superação dos entraves burocráticos através da luta defensista e revolucionária em direção a uma verdadeira democracia proletária de comunas populares, baseada no internacionalismo socialista entre a poderosa classe trabalhadora chinesa e os seus irmãos trabalhadores e oprimidos de todo o mundo.

 

Notas:

 

1. “A riqueza da sociedade burguesa, à primeira vista, apresenta-se como uma imensa acumulação de mercadorias, sendo sua unidade uma única mercadoria. Toda mercadoria, porém, possui um duplo aspecto: valor de uso e valor de troca”. Marx formula pela primeira vez essa sentença em sua “Crítica da Economia Política (1859) para depois desenvolvê-la em O Capital (1867), inspirado em uma passagem da República de Aristóteles. Para Marx, essa descoberta foi tão importante que ela é a frase que abre duas de suas obras mais importantes acerca da crítica da economia política burguesa. O trecho de Aristóteles que inspirou Marx é o seguinte: Aristóteles, De Republica, LI, C. “De tudo o que possuímos há dois usos: ... um é o próprio, e o outro o uso impróprio ou secundário. Por exemplo, um sapato é usado para desgaste e é usado para troca; ambos são usos do sapato. Aquele que dá um sapato em troca de dinheiro ou comida a quem o deseja, de fato usa o sapato como um sapato, mas este não é seu propósito próprio ou primário, pois um sapato não é feito para ser um objeto de troca. O mesmo pode ser dito de todas as posses...” (Aristóteles, 380 a. C, apud in Karl Marx: Crítica da Economia Política. 1859, Parte I - A MERCADORIA) - https://www.marxists.org/archive/marx/works/1859/critique-pol-economy/ch01.htm#1a. No Capital, publicado 18 anos depois da “Crítica” de 1859, Marx faz pequenas alterações no texto original “A riqueza das sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista apresenta-se como “uma imensa acumulação de mercadorias”, sendo sua unidade uma única mercadoria. Nossa investigação deve, portanto, começar pela análise de uma mercadoria.” (Karl Marx. O Capital Volume Um; Parte I: Mercadorias e Dinheiro; Capítulo Um: A Mercadoria). https://www.marxists.org/archive/marx/works/1859/critique-pol-economy/ch01.htm

 

Referências Bibliográficas

 

LENIN, V.I. Sobre o imposto em espécie, 1922, Global Editora. 1987.

MARX, Karl. A Ideologia alemã, Editora Boitempo, 2007.

MARX, Karl. Grundrisse, Editora Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O capital, crítica da economia política, Livro I, o processo de produção do capital, Editora Boitempo, 2017.

TROTSKY, Leon. Not a Workers’ and Not a Bourgeois State?, November 1937. https://www.marxists.org/archive/trotsky/1937/11/wstate.htm.

TROTSKY, Leon. Revolução Traída, 2. Estimativas comparativas dessas conquistas, 1936, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1936/revbet/ch01.htm#ch01-2

WEBER, Isabella M. Como a China escapou da terapia de choque. Editora Boitempo, 2023.

 
Compartilhe este conteúdo:
  Veja Mais
Exibindo de 1 a 9 resultados (total: 33)

 contato@emancipacaodotrabalho.org
Junte-se a nós!