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Moeda Vampira: metamorfoses do dinheiro, criptomoedas e o colapso do capital

Moeda Vampira: metamorfoses do dinheiro, criptomoedas e o colapso do capital

A análise aqui desenvolvida explicita as mutações contemporâneas do capitalismo, com ênfase em sua tendência à autonomização metafísica, materializada em fenômenos como as criptomoedas e a financeirização global.

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Leonardo Lima Ribeiro

É nas passagens iniciais de o Capital que Marx trata das metamorfoses do dinheiro, após explicar como funciona a troca das mercadorias. Quando Marx inicia a análise da mercadoria, vai aos poucos demonstrando que a intenção não é apenas explicitar o dinheiro em abstrato, um símbolo qualquer. É preciso que ele se torne um equivalente universal para realização do mais-valor. Assim expõe demoradamente sobre como esse dinheiro precisa, para fazer isso, inclusive na contratação da mercadoria força de trabalho, ser mensurado como mediador universal das trocas de mercadorias. O processo de compra de trabalhadores sob a forma salário está indexado a essa premissa. Para tanto, o dinheiro precisa ser cada vez mais leve. Precisa, se é para realizar a troca, ir se “desmaterializando”. Precisa ser cada vez mais leve. Há toda uma exposição lógica sobre a história da diminuição do peso da moeda como parte do desenvolvimento da esfera de circulação das mercadorias. Assim,

"O dinheiro só pode transformar-se em capital na medida em que é convertido em meio de compra da força de trabalho e de meios de produção. A circulação simples da mercadoria – vender para comprar – serve apenas para a troca de produtos e satisfaz necessidades. A circulação do capital, ao contrário, distingue-se por sua forma característica: comprar para vender por mais." (O Capital, Livro I, Capítulo IV)

O ponto aqui expresso não é valorizado dentro dos quadros comunistas de uma forma mais frequente. A esfera das mercadorias supõe um aperfeiçoamento na velocidade das trocas, e é sobre essa tarefa que a burguesia se debruça, e que Marx denuncia com grande rigor, para afirmar também que o mercado supõe um problema de velocidade e lentidão, a depender do peso da moeda.

Não é costume abordar esses movimentos de metamorfose da forma dinheiro até que ele se transforme num equivalente universal e sirva como meio, como mediador de troca de mercadorias e também de compra da força de trabalho, para levar essa força de trabalho ao processo produtivo exploratório (D-M-D’). Não por acaso,

“O dinheiro surge da circulação mercantil, e nela permanece. À medida que o desenvolvimento das trocas aumenta, cresce a necessidade de um meio de circulação que seja mais ágil e menos oneroso do que o ouro e a prata metálicos. Assim, o dinheiro assume formas cada vez mais leves: de moeda metálica a papel-moeda, de papel-moeda a signos puramente contábeis e crédito." (O Capital, Livro I, Capítulo III)

Existem vários momentos em que Marx explicita que a burguesia inclui paulatinamente processos de aperfeiçoamento da circulação das mercadorias, elegendo equivalentes universais mais sofisticados, que acelerem o processo das trocas. Trata-se de diversas passagens sobre as mutações no dinheiro, como equivalente universal, até transformar-se no meio adequado de expressão das trocas e da mais-valia. O papel-moeda como substituto dos materiais mais pesados é algo considerado fundamental. É fundamental para que a dinâmica do capital aconteça mais rapidamente, uma vez que o peso da moeda interfere na realização do lucro final e nas velocidades das trocas.

A tendência à leveza da moeda no processo de troca é parte do processo de desenvolvimento do capital e, subsequentemente, de suas contradições. Lá onde o ouro ou a prata eram considerados muito pesados, observa-se a parcial substituição por outras plataformas de representação do dinheiro como meio de troca, ou melhor, como equivalente universal das mercadorias, inclusive como meio de troca do equivalente universal da mercadoria trabalho, do trabalhador (mercadoria força de trabalho socialmente necessária subsumida à matemática econômica, colonizada pela temporalidade lógica e opressiva do capital-trabalho).

Seguindo a lógica e o movimento histórico desta premissa, é importante dizer que o surgimento das criptomoedas segue esse movimento ascendente de designação simbólica relativa aos mecanismos burgueses, elencando um suporte virtual para conferir leveza a esse equivalente universal que é o dinheiro (o PIX como forma de pagamento não deixa de ser também um meio de expressão desse movimento burguês). Assim, o bitcoin e as outras moedas, todas as criptomoedas, são uma espécie de ápice no movimento de atribuição de leveza de suporte monetário a qual Marx havia antecipado.

É interessante observar como Marx comentava que, nesse sentido, não havia apenas uma questão de mais-valor, mas uma questão de as moedas representarem o “espírito” do capital, no sentido de que elas se transformassem ou realizassem uma tarefa metafísica. Moeda cada vez mais etérea, no intuito de se desmaterializar. Uma aparente fuga do mundo, mas também de retorno a esse mundo para vampiriza-lo (a fuga é um delírio burguês).

Não custa lembrar que: "O capital é trabalho morto que, como um vampiro, só vive sugando trabalho vivo, e quanto mais vive, mais trabalho suga." (O Capital, Livro I, Capítulo 10). Ora, as criptomoedas são parte desse processo de vampirização, embora nem todo o trabalho morto deva ser mensurado sob a forma monetária (lembramos aqui do imenso capital constante acumulável na forma de bens móveis e imóveis de todos os tipos).

Outra coisa interessante que poderia ser melhor analisada é a questão do blockchain. Blockchain como uma espécie de corrente financeira rastreável apenas pelos cupinchas. Cada transação é registrada e não pode ser repetida, mas sempre no interior de grupos de jogadores que participam de uma tribo das transações.

Trata-se de um conjunto de lances o qual é dado por meio do sistema das criptomoedas. Supõe correntes que vão se encadeando do ponto de vista virtual, que apenas a tribo tem acesso, criando assim no anonimato um senso especulador de pertencimento e autofiscalização. Trata-se de uma espécie de pertencimento de clã. Só alguns podem criar o percurso dessa corrente do blockchain, que é construída quase como uma forma de jogo, de gamificação sádica da brincadeira nas apostas virtuais projetáveis.

É como se as burguesias brincassem com o mundo (embora nem todo especulador possa ser analisado como burguês, uma vez que não necessariamente tem a posse, a propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida humana nos marcos do capitalismo). As grandes corporações e suas brincadeiras de correntes do “bem” especulativo com moedas virtuais podem aterrissar de vez em quando no mundo como um playground de projetos. Por isso tem um olho no movimento da moeda, e outro no mapa do mundo a ser fatiado, com os estados nacionais sendo por eles subornados e achincalhados.

Um terceiro ponto complementar e que poderia ser acrescentado é exatamente o do colapso do capital, justamente em função do que acima foi expresso. Quando burguesia tem a posse e a propriedade das criptomoeadas, contraditoriamente, essas moedas etéreas são sintomas de uma fantasia. A burguesia fica, de fato, sem parâmetro até mesmo para reconstruir o mais-valor. E quando se realiza é através de zonas muito locais, embora o deslocamento da indústria para a China tenha acontecido e a desindustrialização de muitos países ter ocorrido ao longo dos últimos 50 anos, desde de s alinhamento entre Kissinger e os chineses.

O que nós temos aí é o capital em erosão. E no ocidente é ainda mais clara essa evidência. O capital envolve materialidade, que não prescinde de um equivalente universal monetário. Mas as criptomoedas são desertoras, que pairam no campo especulativo. Se o movimento do capital, que envolve materialidade, também se torna etéreo no processo de uma moeda nova, mais leve, e ele opta por essa moeda mais leve, necessariamente se descapitaliza, se desmaterializa. Portanto, tende a se desfazer na totalidade de suas dimensões.

Com o movimento crescente desses bitcoins, podemos observar não só a destruição do capital, uma falta de controle interno do próprio capital pelas regras que o demarcam na

sua estrutura constituinte. Para compensar esse descontrole, a burguesia continua a rematerializar seu dinheiro especulável, aportando-o em empréstimos hipotecários de bens nacionais e guerras, na convergência paradoxal com a imaterialidade das criptomoedas e dos papeis e ações nas casas de aposta das bolsas internacionais.

Se o capital tende a se desvalorizar em função da perda acelerada do equivalente universal, está indo pelos ares (junto com o neocolonialismo como meio complementar na história do enriquecimento por roubos e genocídios). Surge uma aposta na guerra para retirada de muita gente do meio do caminho.

Com mundo do trabalho cada vez mais precário e submetido a própria dinâmica financeira acima expressa na forma de uberização, com a perda das colônias pelos grandes centros de poder, com a robótica inteligente (machine learning) e com a metafísica das criptomoedas se forma então o conjunto dos acontecimentos que engendram como resposta à crise um Warfare: a reativação da fase histórica beligerante do capital. Trata-se de uma guerra quente que se inicia de forma descentralizada em diferentes regiões, mas que paulatinamente se unifica em uma espiral destrutiva de longo alcance. As guerras fractais formam partes de um quebra-cabeças cuja imagem é a de um caleidoscópio mundial indexador de catástrofes simultâneas e subsequentes, as quais, portanto, vão se somando e persistindo no saldo geral.

É isso que permite o entendimento do que agora se passa. Estamos na iminência dessa nova guerra mundial. O que o capital pode roubar enquanto não tem robôs trabalhando integralmente no lugar de humanos, de modo a amortecer a crise monetária como equivalente universal do mais-valor e do lucro, entre a produção e a circulação de mercadoria na geografia de um planeta fatiável economicamente? É essa a questão que a burguesia lança mão a portas fechadas nas vésperas de uma guerra. Enquanto os bitcoins, as criptomoedas, não conseguem estabelecer um lastro palpável, a paz está morta, embora se saiba que não é dela que o capitalismo provém e se nutre. Então, seria esse o conjunto de reflexões que eu faria. Uma complementação ao que nós acabamos de publicar aqui.

A análise aqui desenvolvida explicita as mutações contemporâneas do capitalismo, com ênfase em sua tendência à autonomização metafísica, materializada em fenômenos como as criptomoedas e a financeirização global. No entanto, essa investigação não pode ser conduzida sob o peso de certas ortodoxias marxistas que, frequentemente, reduzem o pensamento de Marx a um conjunto de dogmas estáticos e desconectados das transformações históricas concretas.

O conhecimento dessas mutações do capital e o seu compartilhamento é absolutamente fundamental para a classe trabalhadora, de modo a criar assim melhor orientação tática e estratégica. Só assim poderemos fomentar uma organização que caminha sob o norte revolucionário, sem confundi-lo com liturgias cartilhadas incapazes de enfrentarem os desafios do nosso tempo com o rigor e a profundidade que eles exigem.

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